Teatro de todos os dias
Relatos de experiências da Cia. Crônica de teatro
Um começo
Por Rogério Coelho
Dramaturgo
Tenho medo de perder a visão. Indiferente a toda infinidade de sentidos, que “ver” e “enxergar” podem tomar, o que mais me fascina, no que tenho a lhes dizer, é essa lividez dos olhos que têm vida. Principalmente, quando neles há lágrimas. Ver através desse Lívido é perceber todo o derredor sob uma nuvem densa; que vem de dentro pra fora nas águas cheias do sentimento do mundo. Drummond bem que tentou me ajudar a traduzir esse transbordar; do choro de alegrias e tristezas, embotados de tudo que é emoção. Mas, traduzir é uma tarefa nova a cada passo; a cada verso; a cada dia; a cada novo espetáculo, diante dos olhos. É um exercício constante, a reinvenção do mundo de cada dia, em nós. Daí, diariamente, ao acordar tenho medo. Porém, recobro-me da coragem, a que me faz abrir minhas janelas: Que haja luz! E esteja posto, o que há de se ver todos os dias.
O teatro, pra mim, tomou esse sentido de ver, quando choramos juntos num barraco da favela da vila Mangueiras[1] (reg. Barreiro). Todos os companheiros ali com o teatro circ(o)lante pela periferia, agraciados pela presença de Reinaldo Maia[2]. Grandes festas nas ruas e vielas; moleques que saiam de todos os lugares, até de dentro dos bueiros; um teatro encarnado em nossas vivências e infâncias. As lágrimas vieram depois de um dia intenso de atividades. Desaguou na avaliação do que fazíamos ali. Maia chorou, e nos fez desabar dizendo que, apesar de todo esforço e humanidade que tínhamos, conosco e com aquele lugar; com ou sem os recursos todos, tínhamos que ser “eficazes”[3].
Tenho medo de perder a visão, desde então. As dificuldades de se dizer a verdade, consumadas por Bertold Brecht, e nascidas pra nós, naquele momento, das lágrimas do Maia foram... verdadeiras. Verdades são difíceis de dizer. Presencio isso em minha vida pessoal, que se enreda na profissional. Elas acabam se tornando uma dramaturgia de minha militância social-cultural. Lugar que se costuma a tomar o fictício por testemunho. Às vezes, o absurdo diário parece mentira; as disparidades sociais e a imposição da desigualdade expõem-nos a uma distância, que devemos tomar daquilo que fazemos. A fim de termos melhores vistas do todo. Distância que às vezes incomoda. Tivemos que deixar os meninos e os bueiros, por um tempo, porque haviam outros tantos onde decidimos instalar nosso recomeço[4].
O distanciamento em cena, quando tomamos uma greve, no espetáculo “Estômago”, reflete o mesmo lívido nos olhos dos atores. Eles encaram o público pra dizer que “Tudo isso (as condições de exploração e opressão no trabalho é algo natural) que tentam nos enfiar goela abaixo, não passa de uma mentira! É teatro”[5]. Acendem-se as luzes, e dá pra ver o “brilho, o vigor nos olhos dos novos funcionários” (o público). Operários de olhos a postos, dos quais esperamos causar... lividez. Não fosse essa arma, mais que conhecida de Brecht, talvez chegaríamos a requerer uma cegueira espontânea, do que a visão obrigatória do cotidiano em perversidades.
Esperamos esse brilho, vida a fora. Eu, por exemplo, que dou aula de inglês, tenho jovens retinas em minha frente, todos os dias. Refletem a minha imagem de futuro diante delas. Não sabem que sou apenas um verbo: To Live, pensando na assonante Lividez que meus olhos podem tomar, para lhes dizer que o futuro está neles. É a verdade! Nos olhos deles. Está, também, no nosso compromisso de inundar-lhes a autonomia.
Hoje, chorei ao me lembrar do Maia, que nos foi cicerone do “Teatro de Arena” (SP) e sua história viva; das lutas com o teatro de grupo; das lutas políticas tendo em vista as grandes contradições dos nossos tempos; na luta dos anfitriões dessa revista, a Cia ZAP 18, guerreiros imediatos do vivo teatro realidade! Reinaldo morreu segurando um violino, há dois anos. Ecoam ainda em mim os ecos estrondosos, dos “tapinhas” nas costas, bem camaradas, que ele me deu saindo dos soluços daquele dia: “Nunca deixe de escrever”.
Tenho medo de perder a visão e deixar de enxergar o teatro de todos os dias, sob a transparência dos olhos lavados; sob o desejo de que nossas lágrimas valham a verdade que as provocaram.
Uma trajetória
Por Jessé Duarte
Partindo do tema proposto pela ZAP 18, “Teatro e Sociedade”, tomo como referência, os estudos de Bertolt Brecht realizados em torno do teatro épico-dialético e o processo de montagem do espetáculo Estômago para trazer uma reflexão sobre a atual sociedade. A criação de Estômago esta diretamente ligada à origem da Cia. Crônica e sua postura crítica atualmente, na peça são levantadas questões relacionadas à luta de classes, como a opressão e exploração para refletir sobre um momento em que a aparência triunfante do capitalismo não deixa transparecer suas contradições gerando uma naturalização dos problemas sociais.
A reflexão sobre essa ‘naturalização’ venho à tona de forma mais conseqüente no ano de 2009, ano em que grupo se consolidava e ao mesmo tempo eclodia uma crise econômica mundial. Milhares de trabalhadores foram demitidos para serem recontratados novamente com salários menores; os governos de todo mundo se organizaram com o objetivo de arrecadar alguns trilhões para salvar uma minoria de bancos e multinacionais; fusões de grandes marcas aconteceram e os projetos assistencialistas e eleitoreiros se proliferaram elevando o nível de popularidade do governo.
Tudo isso incomodava e continua incomodando profundamente, por isso a escolha de desenvolver nossa pratica e pensamento teatral em meio a fábricas da periferia industrial de Belo Horizonte vai muito além de uma escolha formal. Diante dos nossos olhos, o eu se apresenta é região onde a falta de acesso a todos os tipos de serviços básicos necessários ao ser humano e completo descaso maquiado pelo assistencialismo impera. Entender a arte para além das formas mercadológicas tem sido então um exercício constante para questionar modelo de sociedade que se diz justo, democrático e humano.
Para criação de Estômago, partimos da idéia de uma fábrica que produz, onde o que é tido como impossível para grande parte da sociedade se torna um produto em alta para os capitalistas que transformam a realidade em favor dos interesses de manter a dominação.
Dentro do processo vimos que não bastava apenas fazer uma critica ou até mesmo apontar as contradições, se não conseguíssemos projetar novos elementos em cena, que permitissem ao espectador compreender sua realidade como fruto de um processo social histórico, para a partir disso desenvolver um ponto de vista. O que esta em jogo não é apenas criticar, mas gerar uma atitude historizante da cena, quebrando tendências morais, como a de pensar que a vida sempre foi assim mesmo.
Uma das cenas do espetáculo, em que o patrão chamado de Boca visita a fabrica para falar aos novos funcionários (publico) tentamos estabelecer uma narrativa que revele do que os Bocas de hoje se constituem. Uma sombra é projetada em chapas de radiografias, tiradas de trabalhadores acidentados ou de lesões e tumores gerados por doenças contraídas no trabalho. Um braço de manequim faltando o dedo mindinho e outro com placas de computador, parafusos e botões é manipulado por um ator que faz a sombra. Enquanto isso é montado aos olhos do publico, um outro ator, no caso eu, me distancio explicando a dificuldade de projetar um patrão em cena, uma vez que diferente do capitalismo industrial, onde o Brecht buscava elementos para criar suas peças e via condições colocar em cena, figuras de patrões, o capitalismo financeiro é formado por grandes corporações, bancos e multinacionais que sequer sabem a cor da terra que elas extraem o minério, o importante para eles é ações na bolsa de valores. Da mesma forma, o operário não sabe quem é seu patrão e nem mesmo se vê como trabalhador. Antes, um colaborador que inclusive tem oportunidade de comprar ações e se tornar um sócia ultra minoritário.
Fazemos parte de um tempo que não viu grandes lutas e marcado pela subida de um ex-operário ao “poder” que levou consigo a esperança de milhares de brasileiros em terem suas vidas profundamente transformadas. O que de fato ele transformou. Como falamos acima, transformação é um produto em alta no mercado. O povo passou de miserável para consumidores em potencial, aprofundando em prestações, se endividando até pescoço para ajudar a elevar os lucros das empresas para 400% enquanto que o salário mínimo cresceu em media de 5% ao ano. Como diria o ex-presidente “nunca antes na historia deste país, os empresários lucraram tanto, disso eles não podem reclamar do meu governo”.
Diante disso, como então tornar eficaz o teatro épico-dialético num tempo que contradições como estas não são compreendidas? Como interferir com a arte nessa realidade? Até que ponto uma peça de teatro pode contribuir para a luta de classes?
Optamos pelo modelo de teatro proposto por Bertolt Brecht, aliado à cultura popular Brasileira para expor as contradições numa linguagem acessível, fazendo a critica mas porem, defrontando a realidade em cena para expor a necessidade de saídas coletivas. Buscamos entender o momento atual como resultante de um período histórico, portanto passivo a mudança. O distanciamento é utilizado para historicizar a cena numa busca constante de levar ao espectador a velha reivindicação de Brecht, de que as coisa não devem ser vistas como naturais e nem impossíveis de mudar. Este é um dos princípios da dialética, entender a realidade em constante movimento e talvez a palavra transformação seja antes de tudo um elemento que precisa voltar a ser protagonista dos palcos e das vidas dos brasileiros.
Por fim compreendo hoje os escritos de Reinaldo Maia no seu livro “Brecht Visto da Rua” em que ele aponta que um dos problemas a serem encarados na criação é a alienação, estado o qual o trabalhador não se reconhece em sua produção, por ela não o pertencer. Como numa indústria automotiva onde são produzidos centenas de carros por dia, mas apenas um deles paga a mão de obra de oito operários qualificados. No entanto, mos enganemos, não é porque sabemos disso que estamos livres da alienação, como tudo na vida, nós somos frutos da sociedade em vivemos e nos relacionamos, o combate a alienação é fundamental para abrir uma perspectiva de superação e se da no dia-a-dia, uma vez que cena refletem-se as relações que se dão em sala de ensaio e na nossa militância cotidiana, seja no teatro ou nos movimentos sócias e políticos que participamos.
Um corpo em movimento
Por Warlem Dimas
Ator
Bertolt Brecht. Querer copiá-lo, cegamente, como pretendem alguns, é tão enganoso quanto querer aplicar à nossa realidade brasileira processos revolucionários de outras culturas. (CHIARINE, 1967, p. 1).
É preciso partir do que Brecht partia, analisando sempre historicamente a sociedade onde se vive. Como ela era, e como pode vir a ser. Sua atualidade está nas relações pensadas dialeticamente em todos os níveis. O modelo que todos os dias nos da mostras de quanto está “enfermo”. Ninguém mais suporta este modelo estabelecido por um minoria detentora dos meios de produção, produção, produção!!! A vida se tornou uma grande extensão das fábricas e pregões mercadológicos, que invadem sem nos darmos conta, nossas relações humanas. Serão ainda tão humanas?
A sociedade esta esgotada, sugada por este sistema que de cima pra baixo tende sempre a esmagar seus “cidadãos”.
Atualizando o Fazer*
Na Cia. Crônica de Teatro temos como base as teorias da dialética, método utilizado por Brecht, que ganha força em sua obra, em sua segunda fase (1940), quando não mais satisfeito com os limites do teatro denominado “épico” ele busca um avanço sobre si mesmo – amparando-se na filosofia marxista.
Uma vez clara a nossa base, ela se torna trampolim para qualquer. Em Estômago[6], deixamos nos contaminar pelas teorias de outro encenador e teórico tão importante na evolução da arte teatral como foi Brecht. Refiro-me ao pouco conhecido e atual Vsevolod Emilevich Meyerhold[7], que buscou com êxito, durante toda sua vida, romper com modo de se pensar a arte do teatro em sua época. Enxugando e resumindo sua fascinante trajetória, Meyerhold, a partir de estudos do construtivismo[8], chega ao ápice de sua pesquisa ao desenvolver a teoria da Biomecânica. Técnica em que o corpo ator é decomposto em seus movimentos e se torna mais um objeto de cena, tendo importante papel como elemento de comunicação visual, estilizado e totalmente anti-naturalista.
Assim, nós da Cia. Crônica, por meio de uma movimentação e proposta corporal embasada na revolução artística construtivista e nas teorias da biomecânica, deixamos nossa contribuição. Pensar o estudo de Meyerhold, e a biomecânica, buscando o teatro épico-dialético significou, para nós, requerer uma atualidade de Brecht. Há uma urgência em estabelecer diálogos possíveis entre diferentes técnicas e exercícios para avançar sobre o Brecht dos nossos dias.
Um Olhar faminto
Por Kaká Pimentta
Atriz
Eu sentia muita fome aquele dia, como estou sentido hoje[9].
Quando comecei a participar do processo da Cia Crônica a palavra para minha expectativa foi fome. Mesmo com pouca ou quase nenhuma experiência a fome foi o alimento para minha evolução. Foram tantas propostas jogadas no lixo e tantas horas colocadas em cena...
Sobre esse sofrimento da concepção, destaco um momento em especial, a construção da cena que roubo a laranja da casa do Dr. Gárgulas. A proposta era muito instigante o que me levou a uma certa loucura para potencializá-la. Nesta ocasião, cheguei um dia bem mais cedo que o resto do elenco e fiquei treinando movimentos com os andaimes que usamos na montagem. Acabei criando uma cena que me agradava muito pela dinâmica.
Quando o resto do pessoal chegou, me animei para poder mostrar o tinha pensando. Mas, no momento de desenvolver a ação travei toda. Por vários motivos, e um deles era a pressão que o próprio processo acaba gerando. Um clima de desconfiança em momentos que o trabalho precisa avançar. A vontade de ver as cenas e ações acontecendo leva todos a uma paranóia. E neste dia foi uma loucura diferente não paramos para discutir, mas fizemos a discussão na cena. E entre choro e superação consegui me entregar à direção, e a direção, a mim. Naquele momento senti que nascia uma atriz capaz de ser criadora do seu próprio destino na cena.
O processo de trabalho coletivo no teatro acontece dia após dia. Cada encontro é uma descoberta e também uma frustração. Mas como o teatro pra mim é alquimia de ser humano, tudo passa a valer.
A dramaturgia, por exemplo, foi acontecendo pouco a pouco, e quando chegou me surpreendeu. Apesar do medo e do ego, o texto quando chegou deu cor e sentindo a tudo que fazíamos e ainda não víamos a meada.
Confesso que mesmo depois de algumas apresentações ainda me surpreendo com as infinitas possibilidades que o texto da mulher narradora proporciona. É uma personagem cheia de força e presença. Quando chega, faz o expectador repensar sobre o sentido da trama.
A personagem seduz não pelo figurino, caras e bocas, mas pelo discurso. A defesa dos elementos sutis, que aparece no desenvolvimento do espetáculo, revela a posição de luta e resistência que a mulher muitas vezes precisa ocupar para “germinar sempre”.
Ser atriz, para a Cia Crônica é me entender também em um processo de minha própria descoberta como ser humano. Sempre digo: Não faço teatro por que escolhi como uma profissão, faço por que preciso sobreviver.
O brilho que posso ter é o do sorriso emocionado do espectador que acredita que tudo foi verdade, mesmo sabendo que no teatro é tudo um “faz-de-conta”.
*REFERÊNCIAS
CHIARINI, Paolo. Bertolt Brecht. Trad. Fátima de Souza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
PICON-VALLIN Béatrice. A arte do teatro:entre tradição e vanguarda – Meyerhold e a cena contemporânea. Trad. Cláudia Fares, Denise Vaudois e Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto Letra & Imagem 2006.
PEIXOTO Fernando. Brecht Vida e Obra. Rio de Janeiro. José Álvaro Editor S.A, 1968.
BRECHT Bertolt. Diário de trabalho volume I. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Mello. Rio de Janeiro, Roco, 2002
[1] Sede da antiga Cia Neutra de Teatro.
[2] Reinaldo Maia (1952-2009) – Ator e Dramaturgo Paulista. Foi um dos fundadores do grupo Folias D’Arte. Como autor, tem dezenas de peças encenadas, entre criações originais, como Babilônia e Follias Fellinianas, e adaptações, como Oresteia. Maia é ainda autor de sete livros, entre eles Brecht Visto da Rua e O Ator Criador.
[3] Esse encontro se deu pela realização do projeto “Grupos em Trama”, proposto pelo grupo Trama de teatro com intervenções nas sedes de grupos da periferia de Belo Horizonte.
[4] A Cia Crônica estreou, em contagem de 2009, numa mostra cultural em praça pública com peças gratuitas, apresentações musicais, saraus e discussões sobre políticas públicas para a cultura naquela cidade.
[5] Fragmento de Estômago (2011),Peça realizada com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo à cultura de BH pela Cia. Crônica de teatro, em processo de montagem coletiva. Direção de Jessé Duarte e dramaturgia de Rogério Coelho. Elenco: Jessé Duarte, Kaká Pimentta e Warlem Dimas.
[6] Espetáculo Teatral desenvolvido em processo pela Cia. crônica de Teatro. Estreou em janeiro de 2011 na periferia industrial de Belo Horizonte em antigo Shopping que virou secretaria do município. Com dramaturgia de Rogério Coelho e direção de Jessé Duarte que também integram o elenco junto a Kaká Pimentta e Warlen Dimas.
[7] Meyerhold Vsevolod – Ator, diretor e pesquisador teatral que nasceu em 25 de janeiro de 1875 em Pensa, cidade provinciana de Moscou e morreu em 1940 fuzilado. Ele foi um dos variso artistas vitimas do Stalinismo. (PICON-VALLIN, 2006, p. 61).
[8] movimento artístico modernista (1913-1930). Ação construidora, doutrina estética e artística da época. Opõem a escultura tradicional onde se buscava expressões artísticas que pudessem traduzir as mudanças e ajudar a criar uma sensibilidade, uma arte que não decora mais organiza a vida.
[9] Fragmento de Estômago.